Oberdan Villain conta que quando chegou ao Santos Futebol Clube em 1965, aos 20 anos de idade, recebeu dois conselhos do capitão do time, Lima: deveria guardar os prêmios recebidos nas excursões ao exterior (a carreira de atleta profissional era curta) e, uma vez tendo roubado a bola do adversário, que imediatamente fizesse o passe para alguém que soubesse construir o jogo (zagueiros não eram habilidosos).
Mozer, ao subir para o grupo profissional do Flamengo, em 1980, teria escutado algo semelhante vindo de Zico, ou seja, uma vez feito o desarme, ideal seria que a pelota chegasse o antes possível a Andrade, o onipresente volante rubro-negro.
Dos zagueiros esperava-se destruição, jamais elaboração de jogadas, embora muitos, como os citados, tivessem boa técnica, além de serem fortes e vigorosos. Ambos, aliás, tiveram excelentes carreiras: o primeiro compôs o time dos sonhos que foi o de Pelé, e mandou na zaga gremista em 1977, quanto o Tricolor interrompeu a longa sequência de oito títulos gaúchos do Internacional; o segundo chegou à seleção, ao Benfica e ao Olympique de Marselha, além de ter vencido inúmeros títulos pelo time da Gávea.
Durante muito tempo, a admiração dos amantes do futebol era pelos defensores que “não brincavam em serviço”, o que incluía a curiosa fantasia brasileira de que zagueiros oriundos do Uruguai seriam verdadeiros “caudilhos”. Hugo De León, Atílio Ancheta e Diego Lugano, os dois primeiros com importante história no Grêmio de Football Portoalegrense, o último com marcante trajetória no São Paulo Futebol Clube, corresponderiam a tal “paradigma”. Mas, ao mesmo tempo, havia Dario Pereyra e Diego Godín, muito técnicos, destacados defensores de São Paulo e Atlético Madrid, cujas carreiras começaram à frente, como armadores (às vezes as narrativas suportam a realidade, mas são suportadas por ela). E, claro, todos da seleção uruguaia.
Ao mesmo tempo, no Brasil, ficou famosa a máxima lançada por Moisés – que atuou nos quatro grandes do Rio (mais Bangu e Bonsucesso), Corinthians (pelo qual venceu o histórico título de 1977), Paris Saint-Germain e seleção brasileira – que, durante um bom tempo, alcançou muito sucesso: “Beque que se preza não ganha Belfort Duarte”, referindo-se ao prêmio concedido a jogadores que ficassem 10 anos ou 200 partidas sem receber cartão vermelho.
Já não se admira jogadores como Moisés, entre outros motivos porque nas sociedades contemporâneas nossa tolerância à violência corporal vai, de alguma forma, diminuindo. Além disso, agora os defensores não podem apenas rebater bolas e dar chutões, embora a torcida ainda os valorize quando, como exceção, eles acontecem na destruição de um ataque adversário, supondo-os como mostra de seriedade e compromisso com o time (diz-se, nesse momento, que “jogam sério”).
É um tanto estranha a identificação do torcedor com o atleta que mostra “raça”, um elogio, aliás, que dá o que pensar, se considerarmos a sugestão de Nuno Ramos, segundo a qual há algo de racismo na expressão. De fato, os que não tem a tal “raça” são impuros? Enfim, talvez resida aí mais um dos tantos elementos da cultura preconceituosa em que vivemos.
De qualquer forma, nossos heróis são os artilheiros, ou gente que organiza o jogo para que a bola chegue às redes adversárias, como a nostalgia do “verdadeiro” camisa 10 todos os dias reafirma. Entre os antigos zagueiros, como lembra Gilberto Freyre, uma exceção é Domingos Da Guia, já em seu tempo visto como craque, algo raríssimo na tradição brasileira, que é a do gol, do gozo, da alegria (“a prova dos nove”, segundo certa tradição que parte de Oswald de Andrade, passa pela Tropicália e tenta chegar, aos trancos e barrancos, aos dias de hoje).

Mesmo em tempos mais recentes, dificilmente nos lembramos, animados e devotos, de refinados futebolistas que atuavam na zaga, como Luís Pereira, Júlio César, Mauro Galvão e Aldair. Sintoma disso é a fixação por celebrar zagueiros que fazem muitos gols, como Chicão, no Corinthians, e Gustavo Gómez, no Palmeiras.
O que disparou esse conjunto de recordações foi, suponho, a falha de Léo Pereira, do Flamengo, na primeira partida contra o Atlético Mineiro pelas oitavas de final da Copa do Brasil, ao tentar o passe para seu companheiro de zaga, o xará Ortiz. A baixa velocidade da bola propiciou a antecipação de Cuello e o gol foi inevitável. O técnico Felipe Luís assumiu a responsabilidade pelo ocorrido, já que seu modelo de jogo preconiza a saída de bola na base dos toques e não dos lançamentos longos ou do chute forte, para frente, de modo que os atacantes disputem pelo alto com os defensores adversários, sem que a jogada seja propriamente construída.

Há muita desconfiança contra modelos de jogo que preconizam a saída de bola trabalhada, os passes dentro da própria grande área, a participação do goleiro com os pés, tudo lembrando um pouco o futsal. É esse, no entanto, a estrutura hegemônica do futebol mundial, vista com reservas pelos nostálgicos defensores do “verdadeiro futebol brasileiro”, ávidos pelos gols e pelas jogadas plásticas que serão mostradas nos programas esportivos como os melhores momentos do jogo.
Este, no entanto, tem 90 ou mais minutos, não os poucos segundos que aparecem sintetizados, com imagens em montagem que nada dizem da integridade do evento. A condição física, os métodos de treinamento, a ânsia pelo espetáculo mais veloz e excitante, tudo isso faz com que o futebol seja jogado da maneira como hoje acontece, com todos tentando imitar o que veem na Champions League. Não sei se é possível reverter esse quadro, nem mesmo se seria desejável. Mas, quem sabe, podemos ter uma chance de assistir os jogos sob outro ponto de vista, valorizando com mais ânimo jogadas que não resultam em gols, mas que podem ter plasticidade técnica e tática.
A falha de Léo Pereira foi lembrada com tanta ênfase porque o time perdeu, mas deixou-se de lado, no entanto, a ineficiência do ataque rubro-negro, capaz de em duas partidas marcar apenas uma vez. Sim, vida de zagueiro é uma desgraça, mas isso pode ser relativizado, tanto para nosso gosto estético ficar mais apurado, quanto para que não haja tanta injustiça com os bravos defensores da meta. Longa vida aos beques.